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Enquanto o país do faz de conta dos Bolsonaros e Mourões vive em quase idílica harmonia racial, no Brasil real, das modernas casas grandes e das senzalas que se multiplicam, negros sentem na pele e na alma as agruras dos restos de escravidão entranhados no espírito brasileiro desde o tempo dos senhores, que entendiam ser o trabalho tarefa subalterna, indigna de sua condição social e que, por isso, deveria ser deixada à conta dos cativos.
Com a estúpida morte de João Alberto Silveira Freitas, brutalmente assassinado na capital do Estado, que, mesmo não estando explicitamente associada ao preconceito racial, dele não pode ser dissociada, foi inevitável reavivar a histórica luta dos negros, no mundo e no Brasil, por dignidade, por igualdade, por acesso a direitos ancestrais alcançados pela humanidade em decorrência do processo civilizatório. Direitos estes, com frequência assustadora, ignorados ou desrespeitados em variados pontos do planeta.
Há 31 anos, por ocasião das "comemorações" alusivas ao centenário da abolição da escravatura, eu era cronista do jornal A Razão e escrevi um texto (Pelo 13 de maio ou por todos os dias), posteriormente incluído no livro Recortes do Cotidiano, organizado por Orlando Fonseca, contendo crônicas nossas (dele, do Máximo Trevisan, dos saudosos amigos Gustavo Quesada e Humberto Gabbi Zanatta e meus) publicadas no jornal, do qual éramos todos colaboradores. A capa do livro foi criada pelo talentoso Elias Monteiro (que, como Orlando, Máximo e eu, também faz parte do time do Diário).
Lembrei-me , não há democracia, sem que as desigualdades sociais (e não apenas as jurídicas) sejam vencidas. A liberdade será uma ficção enquanto uns poucos tiverem em excesso o que falta para que a maioria tenha um mínimo de condições de vida digna. Não nos podemos iludir ante a perspectiva de conquistas, no plano jurídico formal, que não se traduzam em resultado prático na transformação das condições de vida da maioria de nossa gente."
Incrivelmente, malgrado avanços inquestionáveis conquistados de lá a esta parte, ainda vemos enorme parcela de nossos irmãos submetidos a funestos conceitos e preconceitos inibidores da possibilidade efetiva de ascensão social, de crescimento profissional, de convivência harmônica com os semelhantes e sendo discriminados em razão da cor da pele. E isso é nojento, abjeto, incompatível com a dignidade e o respeito aos quais todos nós, indistintamente, temos direito com seres humanos e como cidadãos.
Boa parte de nós, talvez a maioria, como Martin Luther King Jr., do célebre discurso "I have a dream", no Lincoln Memorial em 1963, cuja voz pacifista e mobilizadora foi caçada pela violência segregacionista, também sonha com um futuro no qual negros e brancos, como irmãos, vivam em harmonia. Mas, para que isso aconteça, além de sonharmos juntos, precisamos vencer o chamado racismo estrutural. Enquanto ele existir, sempre haverá riscos de novas vítimas negras dessa sorrateira e abominável violência.